quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Água

A palavra chove no meio da noite
É foz em mim, rio em mim
Escorre em mim e mata a sede
Seca-me, acusa-me , liberta-me,
Mas nunca é completamente livre de dentro de mim
Assim como eu nunca sou completamente livre dela.

Por não poder dizer as coisas da maneira certa
Eu só posso ser livre, enfim, quando eu sinto
Quando eu sou água.

Terra

Minha palavra mal dita
Talvez lhe soe saudosista e medrosa
Mas devo dizer que você pode ter razão

Minha palavra é inútil, anti-social e encruada
Vive dizendo não dizer nada
Ebule ao calor feito água

Minha palavra nada clama
Não traz acalanto algum
É radicalmente anti-nada


Minha palavra é apenas
Uma outra dimensão do mundo
(Dentro do mundo)
Idefinido e fora de ar

Minha palavra procura dezesperada
Em meio ao descontrole
Um chão onde possa se firmar.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A hora da sessão coruja

Nunca foram juntos ao cinema. Definitivamente o amor deles dois não era do tipo institucionalizado, estava mais para um happening. Não é que eles achassem que não fosse durar, mas a vida deles era cheia de agito. Havia também doçura e companheirismo, mas o cotidiano beirava um filme Junkie com cenas de sexo no banheiro, muitos cigarros e dois caras acordando todas as manhãs com os cabelos compridos embaraçando-se. A idealização mais adolescente e mais gostosa do amor. Eram sempre duas canecas de café, dois pães, duas tortas, dois cigarros, duas baforadas, um trançar de pernas e braços feito um polvo mergulhado no oceano que era aquela cama, um balé de corpos magnetizados movendo-se em busca de paralelos perfeitos todas as noites num teatro abandonado, uma viagem multidimensional na terra dos sonhos mais bonitos. Um delicioso não ter o que fazer. Matavam as aulas sem procurar perdas ou danos. Brigas tolas com egos mortalmente feridos quando, num piscar de olhos, as palavras duras eram dissolvidas em copos de cerveja (nem sempre eram). Eram as pessoas ideais, um pro outro, pra viver todos os clichês amorosos. Tinham segurança total neles dois pra perder completamente a dignidade. Eram amantes, acima de tudo. Pra um dos dois cabeludos, o outro cabeludo era, muitas vezes, como um irmão mais novo que emprestava uma grana pro cigarro; alguém que lhe fez criar coragem de usar calças extremamente apertadas; alguém rodeado de segredos, era uma loucura pertinente, permitida. Veio inevitável primavevra e um sol brilhou fugaz. Eu apago a luz; às vezes penso naqueles dois e me pergunto por onde eles andarão.

Final alternativo: Eu apago a luz, fecho os olhos e apenas durmo.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

As ondas

Não há nada latente, apenas ondas paradisíacas de sol nos cabelos. Sobre as ramagens dos olhos úmidos o frescor das primeiras gotas de um amanhecer tácito. No percurso da boca corre um rio de palavras macias... mornas... matinais... com o cheiro da brisa do mar e o som do canto das sereias ressoando em conchas alvas que te levam a mergulhar cada vez mais fundo até o limite de onde tudo é impulsionado.

Um lugar protegido por tigres indomados e pássaros sagazes; de onde surgem as contrações que produzem as ondas na beira da praia: a mãe das marés dos nossos sentimentos. Há de se mergulhar fundo entre as pedras e enfrentar os corais do medo de achar-se um pouco perdido. Cavuncar com as próprias mãos a lama que asfixia os nossos pulmões e queima os nossos olhos para no fim descobrirmos que há um enigma indecifrável, mas, ainda assim, ficar admirado com a força que jorra e impulsiona as ondas de enxaguar toda a praia com àguas coadas pela areia, àguas tão límpidas que fazem chorar os olhos embebidos de luz.

Assim como não se vê parte da lua, fica obscura uma banda dos nossos corações: baú que guarda saudades (saudade de uma casa envelhecida pelo salitre, de um quintal onde há um pé de maracujá, de guarda-chuvas, das tuas costas, tuas mãos pequenas e ásperas...) rios que constantemente derramam dentro de nós. Nossos medos habitam este lugar, nossas madrugadas insones habitam esta casa. Aí está o quarto onde os adultos nos punham e puniam, de onde só saíamos quando tínhamos consciência do porquê de estar ali.